Em 2013, quando Vidas ao Vento foi anunciado, supunha-se que seria o último filme do Mestre Hayao Miyazaki, que de lá para cá já entrou e saiu da aposentadoria umas 56 vezes. E talvez tão grande quanto a expectativa em torno da obra, veio uma certa decepção misturada com uma confusão diante da escolha do diretor para o que, até então, deveria ser o seu canto do cisne. A grande paixão do diretor por aviões se uniu aqui à guerra, tema transversal em toda a sua carreira, mas a partir de um ponto de vista que, mesmo sob uma análise bem contextualizada, pode causar algum incômodo.
Kaze Tachinu é a ficcionalização da vida de Jiro Horikoshi, um genial e admirado engenheiro aeronáutico japonês, projetista-chefe da equipe que criou caças muito populares durante a Segunda Guerra Mundial, como o Mitsubishi A5M “Claude” e o seu sucessor, o Mitsubishi A6M “Zero”, utilizado pelo Império do Sol Nascente durante o grande conflito. Esse ponto de vista acabou gerando uma porção de análises condenatórias ao diretor, e muitas delas, apesar de exagerarem no que dizem da posição que o cineasta tomou ao narrar essa jornada de vida (não, ele não trai a própria filmografia em Vidas ao Vento, porque este não é um filme pró-guerra nem pró-fascismo japonês dos anos 30) não estavam tirando do nada o material para a sua exagerada análise.
É inegável que o tom patriótico em Vidas ao Vento grita a plenos pulmões. Particularmente não vejo esse lado da obra como a sua verdadeira essência, apenas um contexto, um pano de fundo para outro tipo de enredo. Todavia, é perfeitamente compreensível entender de onde algumas pessoas tiraram essa visão mais dura para o presente filme. Em meu olhar, a animação se mostra uma maneira historicamente realista de abordar algo não necessariamente realista: a poética de um sonho de vida e a relação sociológica e filosófica entre uma produção bela e o horror que ela pode gerar, mesmo não tendo sido pensada para este horror. É verdade que o próprio filme problematiza a questão, pois o clima de guerra já figurava na Ásia mesmo antes de 1939, e o uso de aviões para bombardear cidades já havia se tornado uma prática, depois dos “primeiros testes” no então não tão distante 1914.
Se atentarmos para como o cineasta utiliza as cenas oníricas — sem um tratamento de fotografia diferente, mas com ritmo e conteúdo bem peculiares, típicos dos sonhos, bem distintos de todo o restante da fita — e principalmente como ele utiliza a trilha sonora ao longo da projeção, veremos que a sua intenção é focar na visão de um homem fascinado por aviões, de como um excelente profissional da engenharia, de como alguém com um contraste pessoal tão grande diante das coisas que o cercavam (inclusive com a descoberta do amor, na pessoa de Naoko) acabou tendo o fruto de sua excelência criativa levado para fins absolutamente destrutivos.
Vidas ao Vento é um filme sobre a criação de uma máquina num contexto onde o seu uso não seria pacífico; sobre uma vida cercada de anseios criativos, sobra a vontade de viver um amor e sobre o espanto para como o meio moldava de forma nada simpática tudo aquilo que esse indivíduo colocava em mãos. Desse ponto de vista, trata-se de um dos filmes mais difíceis do Estúdio Ghibli, não pela temática, mas pelo olhar que lhe dá. Em um filme ambientado num cenário similar, Túmulo dos Vagalumes, vimos o horror da guerra pelos olhos de cidadãos comuns sofrendo as consequências de tudo o que acontecia no front. Já em Vidas ao Vento, apesar de ainda termos vivo o encaminhamento pessoal e sentimental marcando a trama, o ponto de vista não é mais o de um cidadão comum. E justamente por esse motivo é que, desde o primeiro minuto, este longa está “condenado” a parecer umas cem vezes mais sério do que na verdade ele pretende. Claramente um filme-armadilha. Mas definitivamente um dos bons, nesse quesito.
Vidas ao Vento (Kaze tachinu) — Japão, França, EUA, 2013
Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki
Elenco: Hideaki Anno, Hidetoshi Nishijima, Miori Takimoto, Masahiko Nishimura, Stephen Alpert, Mansai Nomura, Jun Kunimura, Mirai Shida, Shinobu Ôtake, Morio Kazama, Keiko Takeshita
Duração: 126 min.